Filhos de Tupã - A Batalha do Cricaré
Uerê, filho do cacique da tribo Goitacá, precisa defender seu povo de ataques dos temíveis aimorés, seus inimigos mortais. Enquanto isso, no além-mar, Vasco Fernandes Coutinho se prepara para tomar posse do território concedido a si mesmo pelo Rei de Portugal, a Capitania do Espírito Santo.
Livro selecionado para publicação pela Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo.
Editoria po Lura Editorial.
Pré-lançamento
Autor: Leonardo Zamprogno
Gênero: Ficção/ Romance histórico
Formato: 14x21cm
N. de páginas: 256
Financiado com recursos do Funcultura da Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo
Editora: Lura Editorial
Previsão de Lançamento: Dez/2024
CAPÍTULO I
Ritual de iniciação
Uerê parou no alto da colina e farejou o ar. Por alguns dias, ele vinha seguindo o rastro da presa, mas considerava que o espírito que a protegia ainda não estava satisfeito em entregá-la à sua tribo. Antes de tudo, o guerreiro precisava merecer, respeitar a caça. Já passava de meio-dia e o sol forte queimava-lhe os ombros, especialmente onde os longos cabelos negros não alcançavam. O calor e a corrida o faziam transpirar, mas o cansaço ainda não o havia abatido. Era jovem e estava prestes a se tornar um dos caçadores da tribo. Voltar com uma presa de valor seria importante, pois todos ansiavam por isso, sobretudo seu pai, o grande cacique Maytuara, a quem, um dia, substituiria como lugar de direito. Um cacique forte seria essencial para a tribo prosperar. Do topo da colina ele tinha ampla visão dos arredores. Logo abaixo, a encosta terminava abruptamente no mar infinito. Ondas batiam fragorosamente nas pedras. À direita deitava-se a bela praia de Iutã, com suas areias brancas, e, à esquerda, ao longe, erguia-se imponente uma grande montanha azulada, que a sua tribo chamava de Pitarapré, a Pedra da Lua, um lugar sagrado que provocava arrepios em quem a avistasse. Dando meia volta, visualizou o gigantesco mar verde – a grande floresta de Tahepsakon – que precisou atravessar para chegar até onde estava, uma floresta densa, que rodeava a vila e se estendia até o mar. Ao longe, incrustada no meio da floresta, era possível avistar a sua vila através de algumas ocas mais altas, ao lado da brilhante lagoa Irani. Desta posição ele pôde ver o quanto viajara perseguindo a presa. Duas luas haviam-se passado e ele tinha a impressão de que estava sendo guiado para algum lugar secreto. Sentia, no entanto, que o seu tempo estava se esgotando. Pela tradição da tribo Goitacá, após a terceira lua o caçador que falhasse em sua caçada deveria retornar à vila para descansar, enquanto outro tomaria o seu lugar. E se não retornasse, um grupo de guerreiros seria enviado para procurá-lo. Mas era muito vergonhoso ser encontrado, pelo menos com vida, pois toda a vila ficaria tratando-o como criança por várias luas. Uerê, realmente, não queria tal desfecho.
Na aljava, presa às costas, só restavam quatro flechas. Carregava nas costas também a lança de madeira, e, no cinto, a machadinha de pedra afiada. Enquanto procurava no horizonte sinal da presa, o arco permanecia firme em seu punho. Quando o vento mudou de direção, o caçador farejou o ar mais uma vez. Ele sabia distinguir o forte odor que se desprendia da pelagem da fera que caçava. Conhecia muito bem esse cheiro, que agora vinha da floresta, um pouco à esquerda de sua posição. Era ela, tinha certeza, assim como a sua hora de agir. Um sutil movimento da folhagem no topo de uma árvore denunciou a posição do animal. Rápido como uma serpente, Uerê retirou uma das flechas e retesou o arco o máximo que pôde. A flecha voou precisa e silenciosamente. A um forte guincho seguiu-se um ruído surdo de corpo tombando. Silêncio novamente. Outro movimento entre as árvores revelou que a presa pretendia usar suas últimas forças para escapar da morte. Até que, tão precisa quanto a primeira, outra flecha zuniu velozmente. Certo de que havia atingido o alvo pela segunda vez, Uerê soltou um forte grito de batalha e correu ladeira abaixo com incrível habilidade, largando o arco e já preparando a lança. O derradeiro momento havia chegado, e ele não poderia desperdiçá-lo.
Chegando ao local, encontrou a presa já quase sem forças, arrastando-se, tentando escapar. As duas flechas estavam fincadas firmemente em sua carne, uma no peito, outra no pescoço, e o sangue escorria. O veneno das flechas já começava a surtir efeito. Sua tribo era conhecida em toda região por usar flechas com dentes de tubarão nas pontas. As feras marinhas eram pescadas pelos guerreiros da aldeia com as próprias mãos. Essas flechas eram embebidas em um veneno chamado Mamikorima, de efeito paralisante. Uerê parou e admirou o animal – um espécime magnífico, de constituição robusta, com pelagem amarela salpicada com inúmeras pintas negras. Uma onça-pintada, conhecida na tribo como ponã. Sem mais demora em abreviar o sofrimento do animal, preparou a lança e o golpeou com toda a força, direto no coração. A fera se contorceu e exalou o último suspiro, ficando imóvel a seguir.
Com uma prece, o caçador saudou o espírito da fera e agradeceu por sua carne, que serviria de alimento para toda a tribo, além da força vital obtida. Segundo suas crenças, o ritual de iniciação do guerreiro dependia disso. Em seguida, o caçador vitorioso amarrou as patas da onça umas nas outras com cipós e pendurou a presa às costas, retomando o caminho através das trilhas tão bem conhecidas. Precisava se apressar agora, para não causar preocupação à aldeia.
À noite, a meio caminho, Uerê resolveu acampar e restabelecer suas forças. O cheiro de sangue atrai inúmeras criaturas noturnas e ele não queria disputar o seu troféu com nenhuma delas. Para isso, envolveu os ferimentos da presa com um farelo especial de mandioca e a deixou numa vala rasa, recobrindo-a com folhas. Fogueiras não eram permitidas no seio da floresta sagrada. Ainda no escuro, Uerê se deitou e contemplou as estrelas conhecidas. Satisfeito, não demorou muito para se entregar ao sono dos guerreiros.
Minutos depois, um barulho na mata o acordou de sobressalto. Atordoado, olhou ao redor. Ainda era noite e a parca iluminação que penetrava por entre as árvores vinha do luar. A mata parecia mover-se inteiramente ao seu redor, tornando o ambiente opressivo. Sentindo-se vulnerável, Uerê pegou a lança e buscou a árvore mais próxima. Subiu rapidamente nela e ficou imóvel. O ruído se aproximava da sua posição, deixando-o ainda mais apreensivo, pois sabia que animais não costumam andar em grupos pela floresta sagrada, muito menos à noite, quando a caça requer silêncio e paciência. Talvez pudesse ser o grupo de resgate da sua vila, seguindo seus rastros, mas sabia que esse grupo partia geralmente pela manhã, e não à noite, quando é mais difícil seguir as pegadas. Quem poderia ser, então?
Repentinamente, irrompe uma turba de indígenas das matas ao redor, indo em direção ao mar. Todos tinham cabelos curtos em forma de cuia, assim como adereços estranhos nas bocas e nas orelhas. Eram aimorés, inimigos mortais da sua tribo. Um deles carregava um saco grande, que parecia se mover. Vinham dos lados onde ficava sua vila, fato que o preocupou bastante.
Os goitacás eram senhores absolutos de todo o reino conhecido. Mais fortes, mais rápidos, possuíam as melhores armas. No entanto, os aimorés eram os únicos que rivalizavam em poder de guerra. Apesar de ser bem treinado com as armas da tribo – um goitacá começa o seu treinamento aos quatro anos de idade –, Uerê sabia que não teria como vencer tantos inimigos de uma vez. Sabiamente, permaneceu imóvel em seu esconderijo, situado num ponto elevado, e esperou a turba passar.
Quando o barulho diminuiu, o caçador ergueu a cabeça e perscrutou sinais do inimigo ao redor. Silêncio. Aparentemente, eles já tinham partido. Quando estava prestes a descer da árvore, porém, um guerreiro aimoré voltou sozinho, farejando o ar. Uerê não sabia como, mas o inimigo parecia sentir o cheiro da sua presa, movendo-se lentamente em direção a ela. Vendo o inimigo quase embaixo de seus pés, sabia que tinha grande chance de derrotá-lo. Apontou a lança para baixo e se preparou para pular sobre ele assim que estivesse ao seu alcance. Respiração e tempo ficaram paralisados por alguns segundos. Assim que visualizou o inimigo na ponta da lança, preparou-se para o bote. O galho em que estava, no entanto, soltou um estalido acusador. O aimoré teve tempo de olhar para cima e rolar para a frente, evitando o golpe mortal. Uerê enterrou a lança no chão, perdendo segundos preciosos para retirá-la, enquanto o inimigo preparava o contra-ataque, também utilizando uma lança. Girando sobre o calcanhar, Uerê defendeu o golpe pelo flanco, finalizando o giro com uma investida certeira em direção ao pescoço do oponente. A lança atravessou carne e ossos da garganta, seguindo-se um grunhido abafado, misturado com saliva e sangue. Ao arrancar a lança com violência, o sangue do inimigo cobriu sua fronte, enquanto o corpo tombava sem vida.
Apreensivo por não saber se os ruídos da luta tinham atraído a atenção dos outros indígenas, Uerê se abaixou e aguçou os ouvidos. Após alguns instantes, que considerou já estar seguro, retirou rapidamente a presa escondida no solo e partiu correndo em direção oposta à turba. A escuridão, que ainda reinava, o protegeu.
Já amanhecia quando Uerê alcançou os limites de sua vila. Com os primeiros raios de sol, ele vislumbrou um fio de fumaça subindo ao céu, o que fez seu sangue gelar. A presa, pendurada em seus ombros, já não tinha mais tanta importância. Na entrada da vila era possível ver vários corpos ensanguentados no chão, sendo alguns aimorés e vários outros de sua própria vila goitacá. Lamentos de mulheres e crianças ecoavam numa cena de medo e tristeza.
…
CAPÍTULO IV
Um bastardo com sorte
O português acordou assustado. Sua visão turva não distinguia com exatidão o lustre de cristal que pendia do teto branco de madeira pintada. Levou as mãos à cabeça e a esfregou. Latejava. Por um instante, tentou se lembrar da noite anterior. Um sorriso se desenhou em sua face. Sim, a festa de boas-vindas dada pelo próprio Rei D. João. Estava orgulhoso de si mesmo. Ele era Vasco Fernandes Coutinho, um guerreiro do mar, explorador do desconhecido. Altivo, levantou-se de súbito, mas a tontura o acometeu por completo. Deixou-se cair na cama novamente. “Acho que bebi demais”, pensou. Olhou para o lado e encontrou um bilhete com uma letra conhecida – era a caligrafia da esposa, Maria.
“Fui ao empório. Deixe o dinheiro da pensão para Guilhermina. Maria do Campo”.
Tudo bem. Ele acreditava que seus problemas de dinheiro estariam resolvidos, pelo menos nos próximos meses, pois conseguira trazer muitos objetos exóticos do Oriente em sua embarcação, como vasos, joias de ouro maciço, esculturas de marfim e especiarias culinárias. E trouxe, também, macacos, pássaros e até mesmo um elefante que sabia manejar uma espada com sua tromba. Particularmente, o rei achou esse animal interessantíssimo, a ponto de querer vê-lo pessoalmente no dia seguinte.
Parecia um sonho tudo aquilo. Era muita honraria para alguém de sua estirpe. Outros nobres da corte estavam extremamente enciumados. Afinal, não era à toa. Vasco Fernandes não nascera nobre. Na verdade, era um filho bastardo que, por sorte, fora acolhido pelo pai e legitimado. Mas, aos olhos da sociedade preconceituosa, não passava de um bastardo. Um bastardo com sorte, pelo menos.
Devido às suas origens, o pequeno novo nobre cresceu forte e astuto, sempre buscando afastar-se desse estigma. De início, fez muitos trabalhos degradantes, até conseguir se alistar no exército e rumar para a Índia, para servir à coroa portuguesa. Após destacar-se na conquista do porto de Malaca, na Malásia, como prêmio, aos vinte e seis anos, tornou-se governador de Ormuz, no Golfo Pérsico. Exerceu o cargo por treze anos, mas abdicou para retornar ao campo de batalha. Lutou ainda no Marrocos e na China em campanhas vitoriosas, gerando muito lucro para a coroa portuguesa.
Em 1534, já com quarenta anos de idade, Vasco Fernandes Coutinho retornou ao seu país de origem como herói. Houve um baile em sua homenagem. O rei, em pessoa, anunciou a todos que lhe pagaria trinta mil réis de pensão pelos serviços prestados. Não parecia, mas era um sonho realizado.
Já havia passado da hora de se levantar. Após outra tentativa quase fracassada, Vasco Fernandes conseguiu, finalmente, esticar as pernas e dirigir-se, cambaleante, até uma pequena cômoda. Olhou-se num espelho na parede e quase não se reconheceu. Ainda era um homem de meia-idade, mas parecia bem mais velho. Algumas cicatrizes marcavam seu rosto, resultado de inúmeras batalhas, mas nada que lhe rendesse alguma sequela mais grave. Sua espessa barba grisalha ainda estava suja de restos de comida da festa do dia anterior. A pele macilenta e os olhos azuis avermelhados se destacavam entre grandes olheiras escuras.
Abaixo do espelho, sobre a pequena cômoda, estava uma vasilha prateada com água limpa, já trocada pelos serviçais. Mergulhou as mãos em concha e, subitamente, levou-as ao rosto, deixando-as escorrer novamente na vasilha. As águas retornavam escuras de tanta sujeira. Ainda de olhos fechados, Vasco Fernandes sentiu-se um pouco melhor. Precisava parecer bem
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